Variedades

Há 40 anos perdíamos a escritora, contista e doceira goiana Cora Coralina.

Coluna Rafael Marques*

Era quarta-feira, 10 de abril de 1985, um dia que, no seu silêncio sereno, se fez imenso na história de Goiás. O ar ameno da Cidade de Goiás, com seu cheiro peculiar de terra molhada e folhas secas, parecia guardar em cada canto o presságio de algo irreparável. Eu ainda não existia nesse plano, pois minha chegada só seria no futuro distante de agosto de 1988. Mas, para aqueles que respiraram as ruas estreitas e antigas da cidade naquele dia, o impacto da notícia foi imediato: Cora Coralina, a musa goiana, a mulher de tantos papéis, a escritora, a contista, a doceira, a florista, havia partido deste mundo.

Os jornais da época, com suas manchetes robustas e cores sóbrias, estampavam uma única e triste informação: Cora Coralina falecera. A comoção tomou conta de Goiás como um vendaval, espalhando-se pelo planeta, atravessando as fronteiras da literatura e alcançando até os corações dos mais simples. Mas, se a tristeza era geral, ela estava especialmente concentrada naquela cidade que viu nascer e crescer a menina feia da Ponte da Lapa. Aquelas ruas estreitas e antigas, os becos e vielas da Cidade de Goiás, tão familiarizados com seu rosto e suas mãos de escritora e doceira, agora choravam a ausência da grande musa goiana.

Naquele 10 de abril, o rio Vermelho, que tantas vezes servira de testemunha silenciosa à vida de Cora, transbordava de lágrimas. Seus ecos reverberavam pelas pedras e pelos muros, ressoando em uma despedida que parecia ser mais do que justa, mais do que necessária. E, ali, nas suas águas, parecia se desenhar a morte não só da escritora, mas de todas as suas memórias, de todas as suas facetas. A casa velha da ponte, que sempre guardou as lembranças e os segredos da mulher simples e profunda, mais uma vez ficava órfã. Era como se ela soubesse que Cora não mais retornaria aos seus corredores de madeira escura e cheiro de jasmim.

A casa, de tanto sofrer, parecia ter suas roseiras murchadas, com suas flores não mais desabrochando naquele dia. O jardim, antes repleto de cores e perfumes que refletiam a própria alma da moradora, agora estava imerso em uma tristeza incomensurável. As pombinhas fogo apagou, que voavam ao redor da casa, pareciam sussurrar à cidade: “Ela se foi, ela se foi”.

Mas, para além do lamento, o que realmente ecoava na cidade eram as múltiplas formas que Cora Coralina representava. Não era apenas a escritora que partia, mas também Aninha, a menina feia da ponte da Lapa, que tantas vezes se sentiu deslocada nas sombras de uma vida difícil, mas que encontrou nas palavras e na poesia um refúgio, uma maneira de olhar o mundo de forma diferente. E, nesse lugar, ela se tornou mais do que uma menina comum. Ela se fez mulher, mãe, avó e bisavó, sempre com a leveza que as palavras podiam dar a uma vida tão marcada pela luta e pela simplicidade.

Morria, naquele dia, a doceira que fazia doces com a mesma paixão que escrevia seus versos. A mulher que, entre panelas e receitas antigas do século XIX, transformava o amargo da vida em algo doce, algo de sabor inconfundível. E o mais fascinante em Cora era como ela conseguia juntar esses mundos: a doçura de seus doces e a doçura de suas palavras, que se entrelaçavam e se completavam de maneira única, como um poema que escorrega pela garganta e se faz eterno.

O que me surpreende é como, embora eu não tenha vivido esse momento, é possível quase tocá-lo através das palavras de quem viveu e de quem soube perceber sua grandeza. A Cidade de Goiás, com seus becos estreitos e pontes, se despediu de Cora Coralina não só como escritora, mas como um ícone da resistência feminina, da luta pela escrita, pela vida e pela memória. Ela foi, sem dúvida, mais do que uma figura literária. Ela era a representação de todas as mulheres invisíveis que, como ela, escreveram suas histórias sem jamais deixar de ser quem eram, em toda sua profundidade e complexidade.

Hoje, 40 anos depois de sua morte, não apenas a Cidade de Goiás ainda respira Cora Coralina, mas todosaqueles, que assim como eu, sabem que “Não morre aquele que deixou na terra a melodia de seu cântico na música de seus versos” (Cora Coralia). Suas palavras continuam a reverberar nos livros, nas ruas, nas flores que teimam em desabrochar nas roseiras da casa da ponte. Ela se foi, mas, como um rio que transborda, sua memória não se apaga. Ela se torna eterna. O legado de Cora Coralina segue vivo, e cada vez que alguém de Goiás ou de qualquer parte do mundo se senta para ler suas histórias, ela volta a existir. E, em algum lugar, no fundo de algum beco estreito da cidade, as pombinhas ainda sussurram: “Ela se foi, mas ficou”.

*Rafael Marques é Escritor, pedagogo, filósofo e Psicanalista. Especialista em Educação Especial, História da cultura Afro, literatura e Terapeuta Ocupacional na saúde mental. Atua como Coordenador Pedagógico em uma Escola Municipal da Cidade de São Paulo. Tem 6 livros publicados e é integrante do CARP e do Clube de escritores de Ribeirão Pires.

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