O Perigo da alfabetização precoce na Educação Infantil
Coluna Rafael Marques*
contexto atual da educação, observa-se um movimento crescente que antecipa etapas fundamentais do desenvolvimento infantil, impondo à criança da Educação Infantil exigências próprias do Ensino Fundamental, como a alfabetização formal. Essa prática, muitas vezes respaldada por uma lógica produtivista e por pressões externas (sociais e familiares), desconsidera as reais necessidades do desenvolvimento infantil e pode comprometer aspectos importantes da formação integral da criança.
A alfabetização precoce desrespeita o tempo da infância, reduzindo a escola a um espaço de treinamentos mecânicos, que ignora as experiências sensoriais, motoras e simbólicas fundamentais para o desenvolvimento cognitivo, emocional e social. Na primeira infância, o que se faz necessário é a alfabetização do corpo, ou seja, a possibilidade da criança experimentar o mundo com todos os sentidos, descobrindo-se e relacionando-se com o outro e com o ambiente de forma ativa, lúdica e significativa.
É brincando que a criança se constitui como sujeito. É ao brincar com terra, água, argila, areia, folhas e flores secas que ela explora texturas, temperaturas, formas e movimentos, desenvolvendo sua sensibilidade estética, sua coordenação motora, sua criatividade e sua capacidade de resolver problemas. Esses materiais naturais não apenas estimulam os sentidos, mas também despertam a curiosidade, a capacidade de investigação e o encantamento pelo mundo – elementos que são a base da aprendizagem significativa.
Além disso, é essencial garantir que a criança explore amplamente as possibilidades do seu corpo: subir em árvores, escalar estruturas, pular de alturas seguras, engatinhar por caminhos improvisados, equilibrar-se em troncos ou cordas esticadas, correr livremente em espaços abertos. Essas experiências corporais são fundamentais para o desenvolvimento da consciência corporal, do senso de espaço e de tempo, da autoconfiança e da autonomia. Ignorar essa etapa em nome da antecipação da escrita e da leitura pode comprometer habilidades que servirão de base para a própria alfabetização no futuro.
Outro ponto essencial é o contato com diferentes formas de expressão artística: pintar com tintas naturais, carvão, pincéis improvisados, papéis de diferentes tamanhos e superfícies variadas, que estimulam o uso de múltiplas linguagens, fundamentais para a constituição de um pensamento complexo e criativo. Essas atividades, longe de serem meramente recreativas, são experiências formadoras que promovem a expressão pessoal e coletiva, a comunicação e a escuta sensível.
A leitura literária também tem papel central na Educação Infantil. Quando a criança participa de momentos significativos de leitura de obras literárias, de qualidade estética e temática, ela entra em contato com o universo simbólico da linguagem. Essas experiências desenvolvem o gosto pela leitura, o vocabulário, a atenção, a escuta e a imaginação, preparando-a, sem antecipações forçadas, para compreender a função social da linguagem escrita.
Portanto, ao invés de antecipar conteúdos próprios da alfabetização formal, o foco da Educação Infantil deve estar nas interações e brincadeiras, nas vivências corporais, sensoriais, afetivas e simbólicas. É nesse terreno fértil que se plantam as sementes da aprendizagem. Quando respeitamos esse tempo e essas experiências, a criança chega ao Ensino Fundamental I com a base necessária para aprender a ler e escrever com sentido, compreensão e prazer.
Insistir na alfabetização precoce é ignorar os fundamentos da infância e a riqueza do aprender pelo corpo, pela experiência e pela brincadeira. É, em última análise, privar a criança do direito de ser criança. E, ao fazer isso, compromete-se não apenas o processo de alfabetização, mas todo o percurso formativo do sujeito. Afinal, a criança que brinca, sente, vivencia, se expressa e escuta, é a criança que aprenderá a ler e escrever com muito mais profundidade, quando chegar o tempo certo para isso.
*Rafael Marques é Escritor, pedagogo, filósofo e Psicanalista. Especialista em Educação Especial, História da cultura Afro, literatura e Terapeuta Ocupacional na saúde mental. Atua como Coordenador Pedagógico em uma Escola Municipal da Cidade de São Paulo. Tem 6 livros publicados e é integrante do CARP e do Clube de escritores de Ribeirão Pires.
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